Não fomos de férias, fomos com uma missão. Tinha uma promessa a ser cumprida e muita vontade de recuperar, de alguma forma, o tempo perdido e o regresso às origens familiares.
A viagem para lá foi cheia de peripécias, perdemos a ligação Lisboa>Praia e quando, finalmente, conseguimos aterrar no aeroporto da Praia faltavam 2 das 5 malas que levamos.
Com pouquíssimas horas de sono, chegamos a Ribeirão Manuel no dia de festa de Santa Teresinha, a Santa Padroeira da comunidade de Ribeirão Manuel e Tomba Torro.
A avenida estava cheia de populares, uns para assistir à missa e outros tantos para visitar familiares, como no nosso caso.
Em cada casa, já as mulheres preparam os pratos de tradição crioula, na sua maioria resultantes do milho, preparado de diferentes formas, acompanhado de carne de porco, galo, feijão, batata doce e mandioca. Não faltou também o xerém, o cuscuz e o arroz branco.
Tivemos de comer em todas as casas que visitamos, a estratégia foi comermos do mesmo prato para dividir "o mal pelas aldeias". Comida simples sem grandes pretensões, mas comida da terra, super saborosa.
Ainda no final desse dia voltamos à cidade da Praia, com nova visita ao aeroporto para tentar recuperar o tempo perdido com a falta das malas. Ainda tinha de montar a bicicleta, pela noite dentro, para de manhã poder seguir com a agenda programada.
No dia seguinte, bem cedo, já estávamos a caminho de São Lourenço dos Órgãos. Que paisagens maravilhosas. Um misto do nosso Gerês, da nossa Ilha da Madeira e da nossa Serra da Estrela, conseguem imaginar?
Já há bastante tempo que não chovia em Cabo Verde, mas na nossa viagem, encontramos um Cabo Verde mesmo verde. A vegetação verdejante bem típica, esculpia as montanhas até o cimo, mangueiras, papaeiras, bananeiras, coqueiros, e imensos milheirais.
Chegamos à vila de São Jorge dos Órgãos onde nos esperava uma passeata com colegas amantes das bicicletas, este é um dos lugares mais incríveis da ilha de Santiago. Arrancamos por trilhos acima acompanhados pelos bombeiros, pela comitiva da câmara e pela federação de ciclismo que fez questão de tão bem nos acolher e mostrar a beleza natural e rural daquela zona. Que, para além de ter um Jardim Botânico, é o lugar ideal para passeios turísticos, caminhadas, bicicletas e atividades ao ar livre.
Paramos a meio do percurso onde as pessoas da terra aproveitavam para fazer uma festa com churrasco, banhos de cachoeiras e muito convívio.
Tivemos cobertura de alguns Media, inclusive da TV nacional. (Em baixo deixos os links de algumas reportagens).
Oferecemos algum material de ciclismo, como equipamentos meus de épocas anteriores, meias de ciclismo, luvas e camisolas também com o apoio dos meus parceiros Di Garda, Famabike, Controlsafe e Contarea.
Contamos ainda com a honrosa presença do Dr. Félix Cardoso que também nos levou a visitar os típicos "restaurantes" de beira de estrada, sempre muito concorridos, onde apreciamos a carne assada, estilo torresmos e a bela da cachupa tradicional, sempre bem regada pela cerveja Strela Kriola.
No caminho de regresso para a Praia visitamos S. Martinho para conviver com os amigos e degustar o famoso grogue caseiro.
No embalo do grogue, esta foi a primeira noite efetivamente bem dormida. Estavamos maravilhosamente instalados no Hotel Pérola, em Chã de Areia, com todas as comodidades, com um pequeno almoço delicioso com todas as iguarias locais, mas também com tudo o que se encontra nos pequenos almoços mais europeus. Com uma bela paisagem sobre a praia da Gamboa está muito bem situado.
Antes de preparar a catrefada de malas e pertences para irmos para Assomada em Santa Catarina, ainda recebemos a visita da bela e enérgica Ariana e também uma entrevista flash com uma rádio local.
Almoçamos ainda na cidade da Praia com a vice-presidente da FCC para acertar o programa dos dias seguintes.
No longo caminho entre a cidade da Praia e Assomada, pouco menos de 1 hora de viagem, num constante sobe e desce entre curvas e paisagens montanhosas, tivemos uma boa visão dos hábitos locais de venda ambulante na beira da estrada, bem como, imensas pessoas sozinhas ou acompanhadas nas bermas, estudantes, crianças, mulheres da agricultura à espera de transporte, pois entre as aldeias da ilha, grande parte das deslocações são feitas por carrinhas que funcionam como táxis partilhados.
Dormimos em Assomada/Santa Catarina nos dias seguintes. Visitamos a zona pedonal e o artesanato no Atelier Beto Diogo que vale muito a pena a visita.
No dia seguinte partimos num passeio de bicicleta, com amigos, junto da Câmara Municipal de Assomada em direção a Ribeirão Manuel, sempre acompanhados pela viatura de apoio do IDJ.
Em Ribeirão Manuel esperava-nos um dia cheio de emoções. Tinhamos visita marcada e organizada pelo Dr. Felix Cardoso à escola de Ribeirão Manuel.
Uma terra cheia de história! A terra que viu nascer o meu pai nascer ficou também bem marcada na história de Cabo Verde pela revolta dos rendeiros com o seu grito de guerra que ficou para a posteridade: "Omi faka, mudjer matxadu, mininus tudu ta djunta pedra" (Homem faca, mulher machado, meninos a juntar pedras). As mulheres tiveram um papel importante nesse confronto para com a justa aspiração do Povo de Cabo Verde a uma vida independente e digna.
Embalado pela emoção de ser um filho da diáspora, foi importante para mim poder partilhar com os mais pequenos um bocadinho da minha experiência. E assim o despertar da consciência dos mais pequenos para a importância do uso da bicicleta e dos seus benefícios. E aqui ainda faz mais sentido!
Uma prova de que com pouco podemos fazer muito. E ainda ficou a promessa do Dr. Félix Cardoso de oferecer uma bicicleta ao melhor aluno (notas e comportamento).
Fiquei de coração cheio ❤
No outro dia, tinha combinado com o amigo Isaías fazer o caminho Assomada - Tarrafal de bicicleta. A Sofia acompanhou-nos com o carro e foi um percurso tranquilo, a estrada era boa, a companhia também e as paisagens melhor ainda. Estrada fora uma vez mais encontramos muitos vendedores na beira da estrada, essencialmente a vender frutas, a Sofia comprou 6 mangas por 100 escudos, embora de dimensão menor às que vemos à venda por cá mas muito mais perfumadas e saborosas. Também ficamos impressionados com a venda de animais inteiros na berma da estrada, autorizados devidamente pelo veterinário, mas não deixava de ser chocante a cabeça do boi já sem cornos e sem pescoço. Assim se vende por alí a carne fora das superfícies comerciais.
A meio do caminho a imponente Serra da Malagueta, tem origem vulcânica e serve de fronteira entre os concelhos de Santa Catarina, São Miguel e Tarrafal. É considerado o pulmão da ilha de Santiago.
Ali encontramos alguns grupos de turistas a fazer os trilhos pedonais que metiam respeito dado a sua altitude até à Ribeira Principal.
Mais uns quilómetros à frente e paramos em Chão Bom, mesmo junto à entrada do que resta do Campo de Concentração do Tarrafal, uma antiga prisão política portuguesa.
Estava um calor abrasador quando chegamos a Tarrafal entre fotos e despedida do Isaías não víamos a hora de mergulhar numa das poucas praias de areia branca que encontramos na ilha.
A água era de um maravilhoso verde-azul e quente, mesmo quente 27º, uma praia com o enquadramento perfeito entre montanha e mar. Na final da manhã ainda assistimos à chegada dos barcos de pesca à praia com a azáfama da venda do peixe ali mesmo, no areal.
Oferta de restaurantes com bom peixe e marisco não falta noTarrafal.
No dia seguinte, tivemos reunião de manhã na Praia e visita a uma escola, Escola Regina Silva - Praia, pelo que, arrumamos tudo no carro e seguimos viagem. Nesse mesmo dia, tinhamos planeado ficar em Cidade Velha, mas acabamos por dormir na Praia até a final da nossa estadia em Cabo Verde.
Tive a oportunidade de visitar o Comité Olímpico Cabo-verdiano e foi muito gratificante a troca de ideias e experiências e ainda tiramos fotos com a tocha olímpica.
Na visita à Escola Secundária Regina Silva foi uma experiência diferente da de Ribeirão Manuel pois estamos a falar de outro tipo de idades, mas foi uma experiência muito enriquecedora e fico feliz se apenas um dos alunos ter alí despertado o bichinho pela bicicleta, como desporto ou mesmo como meio de transporte.
Estávamos instalados no Plateau, o centro histórico da cidade da Praia, onde também estão concentrados muitos edifícios públicos bem como monumentos e vários outros edifícios marcados por traços da arquitetura colonial. Durante o dia a azáfama era grande, mas à noite sabia bem sair para jantar. As ruas estavam mais calmas e encontramos facilmente bons restaurantes com música ao vivo.
Um ponto de visita obrigatória na cidade da Praia é a Kebra Canela e Prainha. Uma pequena praia de mar que vale mesmo a pena. É uma praia urbana com acesso super fácil, a água é quentinha e fica nos bairros, Achada Santo António a norte e no bairro Prainha a leste. Frequentemente utilizado pela população da cidade e por alguns turistas.
Foi o nosso segundo banho de mar em terras africanas. Antes tínhamos estado nas instalações do Instituto do Desporto e da Juventude (IDJ), junto com a Federação de Ciclismo para falarmos da situação do ciclismo no país, o seu papel no desenvolvimento do turismo de montanhas, bem como levar esta modalidade às escolas.
Eram 6h00 da manhã de sábado e num grupo de amantes da bicicleta, acompanhados pela RTP, partimos pela estrada alcatroada que liga a cidade da Praia à Cidade Velha. O caminho fez-se muito bem, havia muito pouco trânsito e muita vontade de pedalar.
Em menos de uma hora chegamos à Cidade Velha, património mundial da humanidade. A primeira cidade que os portugueses tiveram em África, onde nasceu o Homem Crioulo. “Foi o ponto de encontro dos primeiros europeus e negros da costa de África trazidos para o povoamento dessas ilhas. Do cruzamento destas duas raças distintas originou uma população mestiça.”
Para quem ia de roda fina a descida empedrada desde as ruínas da Sé Catedral até à praça onde fica o Pelourinho foi uma aventura.
Sempre em clima de convívio o pequeno almoço não se fez esperar, cortesia da Câmara de Cidade Velha a quem muito agradecemos pelo acolhimento. Mesmo ao lado da famosa rua da Banana, a primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos, foi-nos servido um maravilhoso repasto, na Kaza Antú. Fdjôze de banana, café, bananas, refogado de cachupa de atum com linguiça e ovo estrelado, sumos, etc.
A manhã já ia longa e quem tinha de regressar à Praia apanhou boleia da carrinha do IDJ. Os mais corajosos regressaram de bicicleta. Nós ficamos o resto do dia na Cidade Velha. Aproveitamos para conhecer as praias de areia preta e dar uns mergulhos enquanto esperávamos a vinda de familiares para o almoço, pois vale mesmo a pena escolher um daqueles restaurantes de peixe que se encontram junto ao mar e foi o que fizemos.
No último dia, Domingo, quisemos aproveitar para explorar pois foi o único dia de estadia em que tivemos agenda livre. O destino já tinha sido escolhido - Tarrafal - mas de um outro ponto de vista.
Como “turistas” deixamo-nos ser levados por quem conhecia a zona a pente fino. Fomos ver as vistas nos melhores miradouros, subimos e descemos pela Figueiras das Naus até à Ribeira das Pratas, a estrada era boa mas engenhosa, com muitas curvas e um troço ou outro já necessita de melhoramento. No fim da descida trocamos de carro pois íamos voltar a subir à descoberta de Cuba e das ainda pouco conhecidas piscinas naturais. Uma pérola entre o oceano e a encosta de pedra vulcânica. O acesso não é de todo fácil mas vale mesmo a pena. E claro tínhamos de dar um mergulho.
Maravilhoso!
Fizemos o regresso de Tarrafal pelo caminho da costa. Entre bananeiras e coqueiros, fomos à barragem do Principal. E paramos para nos refrescarmos do calor com uma água de coco. O da Sofia embora fosse o mais pequeno tinha imensa água e quando a vendedora o partiu para comermos o interior era também o mais bem recheado.
Nesta viagem provamos e comemos um pouco de tudo e aprendemos que o que se vende na beira da estrada é bem mais barato e saboroso do que nos supermercados e alguns "restaurantes". O peixe, sempre muito fresco, fica bem mais em conta do que a carne. Comemos muita barriga de atum e muita garoupa, quase sempre acompanhados por legumes locais. Íamos com muita vontade de comer lagosta, mas vai ficar para a próxima viagem, não deu tempo para tudo.
Para beber há cerveija portuguesa ou local a Strela Kriola, o potente grogue feito com cana de açúcar e se preferirem beber água, apenas engarrafada e sem gelo. Lavar os dentes também se aconselha que seja com água engarrafada ou filtrada.
Ao nível de formalidades para entrar no país, não foi necessário visto, no entanto foi necessário fazer um pré-registo na plataforma online, preencher um questionário e pagar 3400 escudos. E claro o passaporte!
Outra coisa a não esquecer é de ir preparados para o calor, em outubro apanhamos temperaturas entre os 27 e os 34º. Um autêntico bafo de calor. Estávamos sempre com calor e fomos habituados às temperaturas altas do Verão em Portugal...
Em Cabo Verde o sol brilha todos os dias, mas os dias de chuva, que são muito escassos, são celebrados com alegria.
Um fenómeno curioso nas paisagens de toda a ilha de Santiago são as casas inacabadas, ouvimos dizer que é para não pagar impostos...
Se muitos escolhem Cabo Verde como destino de praia, acredito que num futuro muitos serão os que o escolhem pelo turismo rural e de montanha, assim como, pela sua herança cultural.
Saímos de Cabo Verde com muitos amigos que nos recebem como velhos amigos.
Sentimo-nos já parte de toda a comunidade.
Agradecemos muito a todos os quantos nos acolheram de coração aberto. A todos os membros da Federação de Ciclismo de Cabo Verde, à nossa família de cá e de lá pelo apoio incondicional durante esta aventura e por último um enorme agradecimento ao Dr. Félix Cardoso que nos acolheu como "sobrinhos", que nos levou a conhecer os seus, que não olhou a meios para tornar a nossa visita o mais agradável possível. À Controlsafe, Contarea, Famabike e Digarda pelo material escolar e roupas que ofereceram.
Acredito que esta primeira vez se repetirá mais vezes e trouxemos muita vontade de fazer mais e melhor pelo nosso Cabo Verde!
Links das reportagens:
Escola Ribeirão Manuel RTC - https://www.youtube.com/watch?v=_OFPRD1-OT8
São Lourenço dos Órgãos: https://www.youtube.com/watch?v=ti6_0hOQKeM
Instituto do Esporte e da Juventude